O Kantele

O KANTELE
Por Daniela Amaral

O Kantele é uma réplica de uma harpa ancestral finlandesa, feita artesanalmente por luthiers, o que imprime neste instrumento peculiaridades em cada região, nas mãos de cada artesão. É um instrumento confeccionado em madeira, uma caixa acústica com 7 cordas, que são dedilhadas de um modo muito especial, requerendo, mais do que a destreza dos dedos, a sensibilidade e a delicadeza do tato.
            As cordas são afinadas no modo pentatônico (RE-MI-SOL-LA-SI). As gamas modais precedem historicamente as escalas tonais diatônicas (estabilizadas nos períodos da Renascença e sobretudo do Barroco); são ainda hoje usadas em músicas tradicionais de diversas culturas orientais. Rudolf Steiner, o pensador austríaco que concebeu a Pedagogia da Escola Livre (tendo sua primeira realização fundada em Stuttgart, em 1919, sob o financiamento da fábrica Waldorf-Astoria) tem como um dos fundamentos da sua compreensão da criança e do ser humano a ideia de que a evolução da Humanidade se repete em cada ser humano ao longo do seu desenvolvimento vital. O modo pentatônico, de acordo com isso, pode ser visto como o mais adequado ao primeiro setênio, característico de culturas pré-racionalistas, em que os saberes intuitivos e espirituais são essenciais, mais do que o pensar como ferramenta de conhecimento do mundo. Por sua sonoridade especialmente harmoniosa, sem a tensão dos semitons, sem dissonâncias e sem uma direção melódica determinada, nem levadas rítmicas como a do violão ou a necessidade de uma digitação da mão direita para definir as notas, como no caso desse mesmo instrumento ou do violino e sua família (cordas esfregadas), ele proporciona a vivência de uma aura onírica, de um tempo mítico, não-métrico, mais livre e fluido, orgânico.
            Com o kantele as crianças tem uma primeira aproximação com a música de modo lúdico e imaginativo, como uma primeira experiência com o som produzido externamente por um instrumento, extensão física e cultural da voz, do corpo humano. Ela experimenta o som como vibração, massageando o corpo, despertando o sentido do tato e a percepção auditiva. A sensibilidade é tocada de modo muito sutil, sem tirar a criança do seu mundo harmonioso, sem a alternância de alegria e tristeza ou os antagonismos expressivos dos modos maior e menor – que vão se desenvolver com o sistema rítmico no segundo setênio. É um ambiente sonoro de tranquilidade, de reconhecimento, de segurança para eles. E em que o querer, o prazer e alegria de descobrir sonoridades, melodias, descobrir a beleza do timbre, das regiões ainda próximas de graves e agudos, e o próprio prazer tátil de dedilhar as cordas é o que conduz o tocar, ainda um jogo sensório-motor – um jogo corpóreo e vital, predominando sobre o jogo simbólico e o jogo de regras que vão definir a música mais tarde.


Com o toque do kantele, a criança educa-se ao cuidado, pela sua própria fantasia com o instrumento e todo o mundo simbólico, angelical, que vivencia, reconhece seus dedos e suas mãos com seu potencial de acolher e tanger, de fazer vibrar suavemente as cordas, de criar ou ‘descobrir’ melodias ‘escondidas’ no kantele, ‘descobrir’ caminhos sonoros, tecer pontes ou intervalos entre um som e outro. Ela vivencia, assim, tempos livremente, sem a regra rítmica, tempos mais lentos ou mais rápidos, andamentos, além das consonâncias puras de quinta e oitava, podendo cantar e tocar ao mesmo tempo, de maneira muito natural. Essa descoberta de estar-no-mundo com confiança e alegria, apropriando-se do que há ao seu redor e sentindo-se pertencente a ele, nessa troca entre perceber e criar, respeita e nutre o desenvolvimento natural de cada educando, redundando em saúde e numa ampliação importante do seu mundo de referências estéticas, que definirão mais tarde sua personalidade.

Comentários